sexta-feira, 30 de abril de 2010

a mulher do pianista.

tinha o olhar sério, compenetrado. parecia, naquele momento, enxergar o mundo inteiro ou absolutamente nada. rosto duro, imóvel, frio. o queixo reto e totalmente em contração dava-lhe a impressão de que era inteiro de madeira, fundido ao piano de mogno desgastado. não era oco. vezenquando fechava os olhos enquanto os dedos, em suas luvas pretas, deslizavam graciosamente pelas teclas. abri-os de novo para não encontrar os da mulher sentada ao seu lado.

ela era, de maneira banal, feia. talvez fosse mais ou menos que isso, mas quem repara em rostos e corpos não repara em gestos e feitos. andava com dificuldade, tinha pernas tortas e disformes. ficava sentada ao lado do homem, olhava-o tocar sem qualquer interesse, entediada. conhecia bem tanto os dedos ágeis como as músicas tocadas. para ela, aquele repertório não passava de rotina e dia-a-dia. fitava as pessoas dali enquanto alternava o olhar pelo lugar ao seu redor.

paredes amadeiradas, bancos ao redor de um balcão, mesas, pessoas. as mais diversas, casais, amigos, colegas, interações. todo um micro-universo embalado pelos toques nas teclas preto-e-brancas. algumas apreciavam, outras agiam indiferentes como a mulher feia, mas de qualquer forma a música embalava o ambiente e todos ali.

entre tantos acordes, dedos que encontravam teclas, pés alcançando os pedais, a mulher feia se move. ela se levanta, com dificuldade, ela sente dor, seus pés disformes parecem que não vão agüentá-la, mas ela caminha até o balcão. pega uma garrafa de água e vai até o começo da calda do piano de mogno, onde há um copo pousado. abre a garrafa e despeja o conteúdo no copo de vidro, enquanto o pianista abre os olhos e não encara nem o mundo, nem o nada. ele a olha e sem perder o tom, agradece pela água, por ela.

-obrigado.

domingo, 25 de abril de 2010

será que ela usa o sorriso secreto? será que os discos que tocavam na velha vitrola do quarto de lençois brancos e meia luz continuam os mesmos? quais são as cores que se destacam em dias cinzas agora? quem sabe as suas horas e, de pronto, teus dias?
e a cada resposta obtida mais uma pergunta surge, menos certeza e mais confusão.

lembro de domingos com teu perfume pelo quarto. lembro do tempo em que teus planos, eram meus. que tudo era certo, assertivo. e então?

"pois é, não deu. deixa assim como está sereno.. pois é de Deus tudo aquilo que não se pode ver, e ao amanhã a gente não diz, e ao coração que teima em bater.. avisa que é de se entregar, o viver. pois é, até onde o destino não previu, sei mas atrás vou até onde eu conseguir. deixa o amanhã e a gente sorri, que o coração já quer descansar.
clareia minha vida, amor, no olhar."

terça-feira, 13 de abril de 2010

no such thing.

crie uma imagem. seja ela como for, seja ela como você queira. sem rosto, sem corpo definido, loira, ruiva, alta, educada, inteligente. crie, invente.

produza uma pessoa que não existe, construa a seu molde. diga que uma pessoa daquela forma fará parte do seu futuro e se atenha a isso, com força. pense em como você seria bom pra ela, curaria traumas, faria café da manhã. casaria.

visite, na sua mente, essa pessoa todo dia. dedique musicas à ela, imagine tardes do mais sensacional sexo no sofá, leia livros que provavelmente a agradariam e aprenda receitas que gostaria de provar com ela. divida com seus amigos a não-existencia dessa pessoa, de como tudo seria melhor se ela não fosse imaginação e procure em casa pessoa que você se relaciona um pouco dela.

pronto, você já encontrou seu par perfeito.

(e perdeu todos os outros "imperfeitos")

domingo, 4 de abril de 2010

ela era outra pessoa, sabe? os olhinhos se estreitavam no sorriso tímido, ela tinha medo de mostrar os dentes que ali viviam acompanhadados das hastes de metal de um aparelho dentário. com sorriso tímido ou não, ela era linda. suas mãos corriam as minhas com doçura sem igual, levava meus dedos a sua boca e fazia parecer que não eram só eles que estava em contato com seus lábios, mas meu corpo por inteiro.

doce, sem um amargo sequer, foi assim que ela aterrissou na minha frente como qualquer bom avião, se me permitem a gíria grosseira. foram poucos dias até que ela como qualquer doce mal coberto, mal assegurado, começasse a amargar. não, não, não é que ela tenha mudado, ficado feia, grosseira ou absurda. ela virou nada mais do que ela mesma, e eu que conhecia tão pouco dela quis ser absorvido por aquilo, sem perceber que na verdade ela não me deixaria entrar.

acabei por ir junto com ela, fechando cada porta que havia entre nós, mas a última, ela o fez só, estava tão forte, tão inteira e eu que juntava meus pedaços só assisti sem perceber que, nesse meio tempo, ela já não era doce, nem amarga. acre-doce.