tinha o olhar sério, compenetrado. parecia, naquele momento, enxergar o mundo inteiro ou absolutamente nada. rosto duro, imóvel, frio. o queixo reto e totalmente em contração dava-lhe a impressão de que era inteiro de madeira, fundido ao piano de mogno desgastado. não era oco. vezenquando fechava os olhos enquanto os dedos, em suas luvas pretas, deslizavam graciosamente pelas teclas. abri-os de novo para não encontrar os da mulher sentada ao seu lado.
ela era, de maneira banal, feia. talvez fosse mais ou menos que isso, mas quem repara em rostos e corpos não repara em gestos e feitos. andava com dificuldade, tinha pernas tortas e disformes. ficava sentada ao lado do homem, olhava-o tocar sem qualquer interesse, entediada. conhecia bem tanto os dedos ágeis como as músicas tocadas. para ela, aquele repertório não passava de rotina e dia-a-dia. fitava as pessoas dali enquanto alternava o olhar pelo lugar ao seu redor.
paredes amadeiradas, bancos ao redor de um balcão, mesas, pessoas. as mais diversas, casais, amigos, colegas, interações. todo um micro-universo embalado pelos toques nas teclas preto-e-brancas. algumas apreciavam, outras agiam indiferentes como a mulher feia, mas de qualquer forma a música embalava o ambiente e todos ali.
entre tantos acordes, dedos que encontravam teclas, pés alcançando os pedais, a mulher feia se move. ela se levanta, com dificuldade, ela sente dor, seus pés disformes parecem que não vão agüentá-la, mas ela caminha até o balcão. pega uma garrafa de água e vai até o começo da calda do piano de mogno, onde há um copo pousado. abre a garrafa e despeja o conteúdo no copo de vidro, enquanto o pianista abre os olhos e não encara nem o mundo, nem o nada. ele a olha e sem perder o tom, agradece pela água, por ela.
-obrigado.